Lisboa aos pedaços

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Relevante escrito no Mosteiro dos Jerônimos
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Há dois anos (e dois dias, se é para ser precisa) eu desembarcava no aeroporto de Lisboa para passar um semestre (okaay, foram cinco meses, na verdade) ali fazendo intercâmbio. Teoricamente, passei menos de quatro meses na cidade, o restante foi ocupado por viagens curtas (Évora, Madri, Londres e Glasgow) e no mochilão que durou um mês (Roma, Palermo, Malta, Nápoles,  Florença, Paris eeee Londres again). Mas Lisboa foi minha casa de uma maneira que nenhum desses outros lugares foi ~ mesmo Londres (iwish) que entre as duas viagens que fiz, passei quase vinte dias. Tirei, por exemplo, pouquíssimas fotos de Lisboa, num misto de “duh, eu vejo isso todos os dias” e de “ah, eu posso tirar amanhã”.

Não que eu me arrependa de não ter “turistado” mais por Lisboa, porque acho que curti a cidade do jeito que eu precisava, não por trás de uma lente, mas nos pequenos detalhes que sim, talvez um dia eu me esqueça, mas que vivi sem a pressa de um passeio com hora marcada pra acabar (okay, tinha hora marcada, mas era uma hora bem distante que às vezes dava para esquecer). É a rotina, eu acho, que torna as coisas mais nossas.

Quando, por exemplo, já passamos um pouco daquela fase inicial de “estou perdida” e já estabelecemos certas regras do ir e vir. Quando você não precisa mais checar vinte vezes para ter certeza de que pegou o ônibus (ou melhor, auto-carro) certo porque mesmo que não tenha, você sabe se virar para voltar para casa. Sabe que se pegar qualquer ônibus que te leve para Av. do Brasil ou da República você vai ter mais de uma opção para descer naquele ponto quase em frente ao Mini-Preço. E aproveitando que vai passar por lá, nada mais justo que reforçar o estoque de chocolates (que são tão, tão baratos em Lisboa) e batatas fritas com tomate, comprar aquele cream cheese imitação de philadelphia e um ou dois cacetinhos (opa!) para o lanche. E se estiver acabando a coca-light de 1 litro, melhor já levar outra, por segurança, non?

Daí você anda de volta pra residência universitária se perguntando quem estará cuidando da portaria e no caminho balança a cabeça para o relógio de rua que teima em marcar zero graus mesmo sendo um belo dia de primavera. Tocando a campanhia, às vezes você vai ter de esperar um pouco para entrar, mas tudo bem. Não é como se alguém fosse te incomodar ali do lado de fora. Lá dentro, se você não é a mais a primeira do seu quarto a chegar a chave não vai mais estar na recepção e talvez em vez de subir no elevador que só aguenta duas pessoas de cada vez, você decida ficar um pouco na cozinha, lanchando e em seguida batalhando por um espaço em uma das geladeiras para pôr a coca pra gelar, guardar o resto do cream cheese.

Talvez você converse com os outros brasileiros ou encontre o espanhol que estuda anarquismo, a italiana que faz medicina, o estadunidense que às vezes te faz companhia no cinema, o russo que vira e mexe pega uma bandeira e vai participar de um protesto lá no centro da cidade, a croata que canta “ai se eu te pego” com o sotaque tão fofo.

Mas com certeza você vai encontrar a búlgara mais simpática e doce do universo quando você voltar para o quarto e ela estará lendo ou conversando com a mãe via skype e vai te perguntar como foi o seu dia e mais tarde ela e a carioca de quem ficou tão amiga irão insistir que você vá com elas dançar lá no Bairro Alto, mesmo sabendo que você irá dizer não. E se você acordar antes dela, da búlgara mais fofa, você vai abrir a persiana com todo cuidado para não acordá-la, porque você sabe que ela tem um sono leve, leve.

E dependendo da sua disposição você vai para a faculdade de metro (sem acento, sim senhor). Disposição sim, porque vai andar um pouco mais até a estação. E talvez os velhinhos já estejam reunidos na calçada para jogar xadrez, mas talvez não e as peças ainda estarão guardadas em um saquinho debaixo da mesa e você vai sorrir sabendo que ninguém, ninguém irá mexer naquilo até a hora deles chegarem. Talvez você passe na lojonha dos chineses para comprar bugigangas ou ver o preço das malas porque você vai precisar de uma mala bem maior do que aquela com que chegou no aeroporto de Lisboa, meses atrás.

Na faculdade você não vai falar com quase ninguém e nem é por nada não, você gosta de observar o vai e vem, mesmo que tenha medo dos vãos nas escadas no terceiro andar. Você vai assistir aulas e aulas sobre medieval e sofrer aquele misto de felicidade e agonia porque como o jeito de ensinar deles é completamente outro. E vai fazer anotações e lembrar que rotina é feita das coisas que você preferiria não ter, como exames e provas e trabalhos. No curto intervalo entre uma cadeira e outra, você vai pegar um café com leite em uma das muitas máquinas espalhadas pelo prédio e pagar alguns centavos de euro por ele e vai aproveitar e comprar aquela fatia de bolo estranha e gostosa que você nunca achou em nenhum outro lugar. Se você resolver almoçar, você vai sempre passar por aqueles cinco segundos de pânico, se perguntando se vão aceitar a sua carteirinha, que é diferente dos demais. E vai sempre pegar a sopa junto com o resto da comida, embora desde que você voltou para o Brasil, nunca sentiu falta de comer sopa antes da refeição. E a comida pode não ser grande coisa, mas faz parte do ritual e é melhor do que ter de lavar o seu próprio prato na pia sempre disputada da residência.

E depois da aula talvez você decida assistir Os Vingadores pela 6º vez e nada melhor do que pegar um auto-carro até o McDonald’s próximo da Estação Saldanha e pedir três cheeseburgueres por um euro cada no cardápio Europoupança e o moço simpático que trabalha ali sempre vai te dar vários sachês de ketchup sem você precisar insistir muito como em todos os outros McDonald’s da cidade. E dali tu corre para pegar o metrô para o El Corte Inglês na estação São Sebastião e vai passar no mercado e pegar um litro de coca-light gelada para beber durante o filme. E você vai sempre achar engraçado quando na legenda aparece a Viúva Negra dizendo “malta” em vez de “pessoal”.

Em outros dias, depois da aula (ou num dia sem aula, como às sextas-feiras) talvez você tenha de ir até Cais do Sodré e lá pegar o 714 e descer um pouco antes do Belém para ir ao Arquivo Histórico Ultramarino, onde todos são simpáticos e as mesinhas de madeira escura tem luminárias individuais. Ou talvez você só queira mesmo um pastel de Belém de Belém (mesmo você jurando de pés juntos que ainda prefere o do Habbib’s). E voltando para o Cais você vai sentar ali em frente ao Tejo e ficar olhando o rio por um bom tempo, porque é bonito e porque você não tem hora para voltar. E na hora que der a hora, você até pode voltar de metro, porque é mais rápido, sim, mas se tem uma coisa que você aprendeu nas idas e vindas da sua rotina, é que não há nada como pegar um auto-carro para experimentar um pouco mais da cidade antes de dar o dia por encerrado.

OLYMPUS DIGITAL CAMERAEu dentro de um auto-carro lisboeta

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